Em outubro de 2000, tive a oportunidade de visitar o Museu Nacional com toda a calma do mundo. Foi um dia especial, repleto de conhecimento e simbologia. No Museu, deparei-me com a exposição Xingu: arte e história. As fotos vinham acompanhadas de depoimentos de chefes de aldeias, registrados pela antropóloga Emilienne Ireland. Um depoimento me impactava mais do que o outro.
Um deles, em especial, utilizei na minha dissertação de mestrado sobre o comportamento do eleitor brasileiro. O depoimento dizia:
“O branco não é como nós. Ele demonstra tanta habilidade para fabricar objetos que nem parece humano. Mas, mesmo sendo tão esperto, o branco é muito ignorante também. Por que ele não vive como gente. Eu já estive nas cidades do branco e vi crianças famintas sentadas na rua, implorando por comida. As pessoas passam por elas e não sentem pena. Talvez pensem que sejam cães. Olhem para o branco. Ele berra, grita e maltrata todo mundo. Quando ele ouve más palavras, não sabe como ouvir quieto. Ao contrário, ele devolve as palavras ruins, responde do mesmo jeito. Tolo, derrama suas palavras raivosas como água que entorna no chão. Torna-se violento e não tem controle de si.”
Na época, utilizei esse depoimento para mostrar os pontos de convergência entre a visão dos índios e a do eleitor, com a seguinte análise: assim como o índio percebe a civilização, o eleitor percebe a política, como algo distante e incompreensível.
Estou completando 30 anos de formada e o mesmo tempo atuando como cientista social e política. Ao longo dessas décadas, analisei uma infinidade de pesquisas, principalmente comparando a evolução do comportamento da sociedade.
Na verdade, não precisamos de uma pesquisadora para observar que estamos cada vez mais imersos em nós mesmos e com menos humanidade.
Esse contexto me faz lembrar do conceito de idiotização, que é o processo de tornar uma pessoa menos crítica, mais passiva e suscetível à manipulação, geralmente por meio de influências externas como mídia, cultura de massa ou desinformação.
E, por tudo que tenho estudado sobre a influência do smartphone e da internet, fico imaginando o que esse chefe indígena diria de nós hoje em dia, neste contexto de idiotização.
Ele provavelmente diria que construímos mais e mais objetos com valores imensuráveis, que nossa inteligência é tamanha que pensamos até em dominar outros planetas. Que nos vangloriamos por termos o mundo na palma da mão e, como se não bastasse, queremos o apoio de uma tal de inteligência artificial.
Mas que nossa ignorância tem aumentado muito. Que estamos cada vez mais tolos, incapazes de enxergar, ouvir ou sequer perceber quem está ao nosso lado. Diria que, se antes não olhávamos para o faminto nas ruas, hoje não damos atenção à nossa própria tribo e, em muitos casos, nem sabemos o que acontece com a pessoa ao nosso lado, dentro das nossas próprias casas.
E se, por acaso, alguém da família tiver uma crise de choro, ele irá dizer que o branco resolve facilmente: busca rapidamente a indicação de um médico para “tratar da cabeça” e dar drogas para estas pessoas se acalmarem.
E com toda sua sabedoria, irá dizer que mal sabe o branco que os melhores remédios da vida estão na convivência entre as pessoas, na troca de experiências, nos medos compartilhados ou na risada solta.
E que temos que refletir e entender que o mundo real é muito melhor do que o mundo digital e que a nossa missão é encontrar o melhor entre estes dois mundos.