Confesso que sinto saudade da época da simplicidade, onde tudo era menos difícil. O mundo se transformou e com ele veio todo esse turbilhão de coisas que, mesmo já estando acostumados, a gente tem menos tempo, menos paciência, menos tudo. E saber que as 24 horas de hoje por incrível que possa parecer são as mesmas 24 horas de antigamente.
Nessa semana vi um jogo onde o narrador observou que um jogador estava de chuteiras pretas. E me surpreendi de eu mesmo não ter notado isso. A modernidade que também chegou no futebol me deixou cego diante de algo tão simples. Em nossa época de criança, todo mundo sonhava em ganhar uma chuteira preta. Preta com no máximo um ou dois detalhes brancos, talvez somente para destacar a marca do calçado. Quando muito, tínhamos um Kichute, éramos felizes e não sabíamos.
Embora infelizmente o mundo ande mais cinza de modo geral, no quesito chuteira a coisa está bem colorida. Hoje em dia é chuteira verde-limão, roxa, laranja, entre outras tantas. Sem contar o peso delas, se é que pesam alguma coisa. A chuteira preta era pesada, quase que chumbada. E que orgulho quando conseguíamos comprar uma e calçar logo. A gente se sentia um Zico da vida. Preta. Simples. Colorida, mesmo, era apenas a TV que estava chegando para a gente ver os craques de chuteira preta.
Nossos campos de várzea combinavam com a chuteira preta. Podia ter um buraco aqui e outro ali, ser quase uma espécie de gincana quando chovia, mas era divertido. E ninguém era mais do que ninguém. A simplicidade mandava sempre e não importava se o jogador usava sua nova e “moderna” chuteira preta ou se ainda permanecia com o Kichute entrelaçando os cadarços pelas canelas.
Volta e meia vemos o pessoal debater sobre os craques de antigamente diante dos craques de hoje, se Messi e Cristiano Ronaldo seriam do nível de Pelé e Maradona ou se o Haaland é mais artilheiro que Gerd Müller ou Romário. O fato é que cada época teve ou tem a sua particularidade. Não só de chuteiras, mas de camisas, por exemplo. Na época antiga as camisas de algodão pesavam bem mais, também. E quando chovia elas pareciam absorver a chuva do mês inteiro. E os caras davam conta.
Fico imaginando como seria o futebol do Pelé ou os dribles de Garrincha e Maradona jogando de chuteiras com amortecimento ou com travas high-tech. Nos pés deles só havia couro e coragem. Isso que, até elas serem amaciadas, os calos se sobressaíam. E eles usavam por um bom tempo até trocar, diferentemente de hoje, quando os jogadores trocam de chuteira como quem troca de meia.
Quem já calçou uma chuteira daquelas sabe: elas tinham personalidade. Hoje as chuteiras podem ser mais leves, mais coloridas e mais modernas, mas nunca terão o peso – literal e simbólico – da boa e velha chuteira preta. E como bônus neste saudosismo todo, quem conseguiria esquecer do Kichute amarrado nas canelas?