A música de Ernesto
**Os textos de colunistas aqui publicados são de sua total responsabilidade e não refletem a opinião do jornal O Alto Uruguai.
sexta, 21 de janeiro de 2022

Quando Ernesto entrou no palco, olhou rapidamente para a plateia e percebeu que haviam policiais ao lado das portas que davam acesso para o auditório. De repente, lembrou-se de que os policiais vigiavam para que o público não viesse a impedi-lo de tocar as suas composições. Enquanto se encaminhava para o piano, uma voz ressoou em seus pensamentos: “Sua música é popular demais para ser tocada neste local”. Ernesto, no entanto, continuou de cabeça erguida, com andar apressado e desjeitoso. O público o acompanhava atentamente. O cabelo esbranquiçado destacava em sua face uma mescla de semblante cansado e de expressão meditativa. Chegando até o piano, sentou-se e começou a executar uma de suas composições. Sua maneira de tocar era cheia de inquietação e gestos?sôfregos. Às vezes, inclinava-se??colocando o ouvido próximo do piano, na esperança de ouvir melhor o que estava tocando. Em outros momentos, balbuciava algo inexprimível, talvez uma súplica queixosa aos céus pelo seu sofrimento. 

Na verdade, por volta dos dez anos, Ernesto havia sofrido uma queda terrível. Seus ouvidos sangraram. E, desde então, sua audição começou a definhar. Um ano depois, acabaria por perder sua mãe, aquela que fora sua primeira professora de piano e também grande motivadora. 
Contudo, naquela noite, o público dito conservador, não poderia deixar de manifestar sua voz de protesto contra a música de Ernesto. E diziam: “Que música estranha!” “Não são peças eruditas e ao mesmo tempo não se afiguram inteiramente populares”. “Não deveriam estar sendo apresentadas no salão do Instituto Nacional de Música”.  
Logo, no instante em que ele tocava, alguém do público começou a bater com os sapatos no assoalho. Em pouco tempo o auditório inteiro procedia nesta imitação, criando um som estrondoso. Ernesto, porém, não percebeu as batidas no assoalho, mas o barulho recriou a voz de seu pai em sua mente, repetindo insistente: “Você precisa pensar em outra carreira. Afinal, a música não traz o sustento a ninguém!” Tentando abafar as palavras do pai, Ernesto tocava ainda com mais veemência, e falava baixinho: “A música sai do meu coração”. E, sem ele notar, seu olho direito derramou uma pequena lágrima. Sorrateiramente, o ruído da plateia foi se extinguindo. Também para Ernesto, a voz revolta de seu pai foi cedendo lugar a uma voz suave vindo de longe. Uma quietação foi invadindo o espírito de Ernesto. Enquanto tocava, ele podia ouvir a fala de sua mãe dizendo-lhe ao ouvido: “Nunca desista, filho, nunca ceda às agruras da vida, você possui o tempo, e o tempo constrói o mundo!”, Viram-no por isso sorrir com doçura. Para ele, sua mãe estava mesmo ali.

O acontecimento acima narrado, diz respeito a Ernesto Nazareth, que se insere entre os três maiores compositores brasileiros, ao lado de Heitor Villa-Lobos e José Mauricio Nunes Garcia. E o mais incrível, depois de Villa-Lobos é o compositor brasileiro mais tocado no mundo. 

São pouco mais de duzentas peças compostas por esse compositor, que refletem o pianismo brasileiro e um imenso cuidado de elaboração. Anseio que o leitor as ouça com grande apreço e satisfação. Que tal iniciar, ouvindo “Odeon”, “Brejeiro” e “Coração Que Sente”.
 

Fonte: