Conversar com os mortos
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terça, 26 de setembro de 2023

Três crianças, Mateus e Malu de dez anos e Gabi de sete, duas irmãs e primo, acompanham o nono numa tarefa, destas que tecem o cotidiano numa propriedade de agricultura familiar. Enquanto o nono atencioso ensina práticas centenárias de fazer coisas no espaço rural da família agricultora, ao mesmo tempo, repassa valores milenares úteis à família, dentre eles o trabalho como princípio de vida saudável. Tudo o que se faz tem sentido lúdico. A criança trabalha brincando. Dela não se espera desempenho econômico. Sob a liderança segura do nono, no entanto, elas procuram participar de tudo o que ele faz, como se fossem aprendizes engajados.
De repente, as três risonhas crianças somem. O nono, já acostumado com os furtuitos sumiços, não se incomoda. Sabe que, em seguida, reaparecerão. Mas, desta vez estão demorando, e ele sai a procura-las. Guaipecas o acompanham como se fossem cães farejadores. No entorno da casa e dos galpões elas não estão. Chama pelo nome das três e elas não respondem. Terão ido na casa de outros primos, distante duzentos metros, coisa que fazem trocando as visitas, um dia lá outro aqui.
O nono, sentindo, aumentar a fricção de sua responsabilidade sai estrada afora e, na primeira curva, avistou-as. Caminhavam soltas, alegres, como se tivessem realizado alguma façanha que contariam ao nono. Já perto, o nono fez valer sua autoridade e perguntou: onde vocês foram se meter? Em coro, responderam, numa comovente sinceridade: “fomos conversar com a Bisa.”
Faz dois anos e meio que a Bisa está sepultada no cemitério da comunidade, distante setecentos metros da casa. A frase “fomos conversar com a Bisa” faz teólogos arrepiarem e continua assustando pregadores que qualificam como heresia pretender conversar com os mortos.
Jesus disse que só entra no céu quem tiver alma de criança. Neste caso, certas estavam as três crianças que foram ao cemitério conversar com a Bisa e não os teólogos e pregadores que gastam quilômetros de tempo para entender fenômeno, para eles complexo, simples para as crianças. Jesus também tratou a questão com singeleza humana e autoridade divina ao falar com Lázaro que suas irmãs diziam que já fedia na sepultura. “Lázaro, saia dali”, disse,
Três crianças planejaram fazer surpresa para sua bisavó. O túmulo e o cemitério não foram obstáculos. Este fato deveria constar nos anais da história da teologia. Elas não disseram ao nono o que falaram com sua Bisa. Com certeza, retomaram conversas, que a morte havia interrompido. No momento de fechar o caixão, Mateus, o mais velho da trinca de primos, na época com sete anos, disse: “Bisa, nós nunca vamos esquecer de você”. A psicologia profunda ensina, que para manter viva a memória de acontecimentos, é necessário conversar sobre o fato que não se quer fique esquecido. Assim, as três crianças realizaram rito de profunda autenticidade: cumprimento da promessa de nunca esquecer da Bisa. A imagem da velha bisavó, de mais de cem anos, presa à cadeira de rodas, continuava viva na memória das bisnetas. Se sua imagem continua viva na alma das crianças, mesmo que esteja morando no cemitério, é sentimento seguro que ela vive na memória das bisnetas. Ela, como Lázaro, não morreu. Pode-se, então, conversar com ela. É isto o que elas foram fazer no cemitério, enquanto o nono cuidava das vacas. 
A alegria que as havia contagiado por terem conversado com a Bisa nos anima a acreditar que a vida venceu a morte, como prometido por Jesus. Para as crianças, a morte não representa tragédia, embora seja fato de separação entre os que continuam ao redor da casa e os que dormem no cemitério.
Três crianças conversando com a Bisa, no cemitério, seria cena de filme laureável com a palma de ouro. A experiência vivida pelas três crianças no cemitério, com certeza, fundamentará suas crenças a respeito da inquietante questão sobre os “destinos do homem”, enigma que a nossa vã filosofia não consegue destrinchar.

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