Espírito Natalino*
**Os textos aqui publicados são de total responsabilidade de seus autores, e não refletem a opinião do jornal O Alto Uruguai
sexta, 01 de dezembro de 2023

Naquele dia, acordei mais cedo do que de costume. Tinha um objetivo em mente, começar as arrumações da casa para o Natal junto com meus pais. Nossa família, tinha o costume de antecipar as providências natalinas, do cardápio da ceia aos presentes. O mês de outubro findava com o pai fabricando licores para distribuir para família e amigos, em caixas que personalizava. O trabalho era meticuloso e acompanhado de perto pela menina, que ia às compras com o pai, no Mercado Público da cidade de Porto Alegre. Lá, se perdiam entre bancas das mais variadas especiarias onde eram adquiridos produtos diversos. O álcool de cereais para feitura dos licores da Banca 12, as frutas secas e fiambres da Banca 43 e as frutas frescas nas bancas externas. Costumavam ir perto das dez da manhã e, nesses dias, a mãe já sabia que a menina voltaria sem fome para o almoço. Chegamos na Banca 43 e o atendente, um senhor franzino, de bigode farto e jaleco branco, cumprimentou o pai cantando:  Buongiorno Maestro, guarda questa música!
Apesar da meninice, já conseguia identificar que ele cantava um trecho de ópera, no que o pai sorridentemente respondeu: - Bravo! Além de outras coisas em italiano que minha memória apagou. Meu nariz alcançava o balcão do estabelecimento, de modo que ficava de frente para vitrine dos produtos. Aliás, que visão privilegiada tem as crianças em relação aos balcões expositores, que revelam como em uma tela de cinema, as mais inúmeras iguarias. Cada vez que o pai falava algo comigo, me esforçava de erguer a cabeça quase desnucando o pescoço para trás, devido a altura dele. Enquanto falavam (e falavam muito), volte e meia o pai me metia algo na boca, de nacos de queijo aos figos cristalizados. E as tâmaras… Hummm… Até hoje, amo muito! Mas, confesso, como sempre fui medrosa com baratas, sempre analisava com cuidado as tâmaras antes de comê-las, pois me lembravam a aparência do inseto nojento. Nossa jornada de compras continuava em lojas que comercializavam vasilhames – usados para os licores -, rolhas de cortiça e cera para vedar as garrafas. Assim os dias que antecediam o Natal eram coloridos, plenos de atividades e alegria. A mãe também sempre amou o Natal e seus enfeites, e era com ela que eu arrumava o pinheirinho. Os adornos, cuidadosamente guardados em caixas de papelão e envoltos em papel de seda, adormeciam por um ano na prateleira da estante, até despertarem para uma nova festa. Os enfeites eram em vidro em formato de: bolas, estrelas, sinos, velas, papais noéis, caramelos em formato de bengala, guirlandas e animaizinhos. As bolas que eu mais gostava eram recortadas ao meio e polvilhadas com um material que imitava a neve. O buraco do centro das bolas, refletia uma luz furta cor quando a árvore de Natal ascendia. Aliás, todas as noites até chegar o dia de Natal, ascendíamos nosso pinheirinho e deixávamos como luz ambiente na sala de estar. A ponteira da nossa árvore era uma grande estrela colorida. Era o último adorno a ser posto no pinheirinho e a honra de fazê-lo era minha, guiada no colo dos pais até o alto da árvore. Aquele momento era mágico e um marco para o início oficial dos festejos natalinos. Com o passar dos dias, iam se acumulando em baixo da árvore, pacotinhos de presente com bilhetinhos indicando para quem eram. Os cartões natalinos também eram muito esperados. Naqueles dias que antecediam o Natal, as caixas de correspondência lotavam. Tenho uma caixa abarrotada deles, com escritas carinhosas a punho, longe da frieza de caracteres das atuais mensagens virtuais. Voltando para os licores, o pai fazia nos sabores café, limão e cidra e os deixava descansar, envoltos em folhas de jornais por alguns dias, antes de ofertá-los como presente. Na véspera do Natal, os preparativos na cozinha iniciam com o nascer do sol. Eu tudo observava, devidamente acomodada no banco da cozinha. Sempre gostei de cozinhar, logo, todo aquele ritual de temperar a ave gigante, de aplicar “uma injeção” de tempero no peru, era algo surreal para mim. Concomitante, o barulho do liquidificador evocava que teríamos um pudim saboroso para ceia. A ave era caprichosamente guarnecida de fios de ovos, cerejas, damasco, ameixas e mais tantas outras guloseimas. A farofa ou sarrabulho não podiam faltam, além de arroz à grega e panetone. Tínhamos um 3 em 1 da Gradiente, mas deixavam o som aos meus cuidados, na pequena vitrola verde clara, que aceitava até discos de acetato (um material que deixava o long play pesado). Nosso último Natal nós três, foi em um quarto de hospital onde o pai estava há meses. Mesmo assim, estávamos juntos e damos o nosso jeito de comemorar de forma feliz, já que o Espírito do Natal é eterno.

Bons Ventos! Namastê

*Uma das crônicas vencedoras na Antologia de Natal 2023, da Editora Lura (https://www.luraeditorial.com.br/). A obra será publicada em formato impresso, em dezembro de 2023.


Fonte: