Homem medíocre
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sexta, 13 de setembro de 2024

Segundo o dicionário, medíocre é o sujeito sem relevo, ordinário, vulgar, mentiroso contumaz. José Ingenieros, filósofo argentino, publicou, em 1913, o livro O Homem Medíocre. Na página 163 diz: “o homem medíocre alimenta-se da mentira e da traição. Age como o cupim que corrói a madeira por dentro.  Ele destrói a democracia ao semear situações de inseguridade social. Agente da banalização do mal insinua valer mais a esperteza do que a ética”.
O filósofo Leonardo Boff tem afirmado que chegamos na fronteira do máximo de mediocridade com o a emergência do Homo Demens, o homem que perdeu o juízo, o homem medíocre. Já sentimos os efeitos devastadores do não precisar mais pensar.
O professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, Yuval Harari, dedica longas páginas, no seu livro Vinte e Uma lições para o Século 21, para falar sobre a verdade, a pós-verdade e a ignorância. Refletindo sobre o advento da inteligência artificial, diz que, em breve, não mais do que 500 mil pessoas ainda pensarão. A absoluta maioria comporá o universo de medíocres, sujeitos sem capacidade de julgar até mesmo assuntos banais do cotidiano. A inteligência artificial vem se impondo como deusa que tudo resolve. As crianças e jovens estão se recusando a estudar como a humanidade estava acostumada a estudar. Até recentemente, o estudo era identificado com atividades desenvolvidas em escolas, orientadas por professores, mediatizadas por insumos didáticos específicos, organizadas em sequências lógicas e avaliadas para definir a sequência do percurso escolar.
A inteligência artificial invadiu o campo do ensino e está bagunçando a velha ordem escolar. A nova geração começa a estudar o que quer e quando quer. Desaparece a autoridade pedagógica dentro das escolas e surge fora das escolas um outro modo de estudar e de aprender, onde os alunos são os mestres de si mesmos.  A turma, o coletivo, a grupalização vão desaparecendo e surge o indivíduo soberano que se entende senhor do universo.
Este novo aluno que se molda a si mesmo é o homem medíocre já prenunciado por José Ingenieros em 1913. A política aparece como cenário fecundo de exercitar a mediocridade. É estarrecedor verificar o desempenho de muitos candidatos que fazem da tribuna eleitoral, que deveria respeitar padrão de dignidade ética, um campo de corrosão moral. Mas, o mais estranho fica por conta da resposta de eleitores capturados pelo derrame de mentiras ditas com a gana de serem acolhidas como verdades. Não somente jovens se tornam vítimas do logro. Pessoas adultas, aparentemente, instruídas, alugam sua cabeça por nada à mentira e enganação, iludidas que o estravagante da novidade basta para validar qualquer arrombo grotesco.
Este desastre já foi denunciado, várias vezes, pelo Papa Francisco que afirma serem indícios da decrepitude desta civilização a mentira e a indiferença. Professor de teologia avalia como desastre o fato de muitos estudantes de teologia terem se deixado contaminar pelo pandemônio da pós-verdade. Diz ele que a nova geração de clérigos tem o Youtube como principal fonte de consulta para realizar seus estudos de filosofia e teologia. Os novos padres se interessam menos com a profecia de sua missão e mais com a estética da comunicação. Para serem profetas, pregadores que denunciam e anunciam, os padres precisam estudar muito mais, afirmava o teólogo professor.
Fui a uma livraria tradicional em Curitiba fazer a prova dos noves. Na estante reservada aos livros de filosofia encontrei 50 livros. Na estante sobre bruxaria havia 200 livros. Na idade Média, a Igreja mandava queimar mulheres estigmatizadas como bruxas. Queimava hereges e pensadores que promoviam outros modos de pensar o universo, a vida, as civilizações. A Igreja exercia impiedosa ditadura dos dogmas, pelos quais impedia o livre pensar.
Agora, a humanidade começa a experimentar a imposição de outro tipo de ditadura, o monopólio da verdade exercido pelas empresas que controlam a difusão da inteligência artificial. Os imensos benefícios que ela trará, com certeza, poderão ser anulados pelo enquadramento da humanidade num único modo de pensar. Quando não for mais necessário pensar, o homem estará preparado para acabar com a civilização. O homem medíocre é o pior de todos os analfabetos. 
 

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